9 de out. de 2009

Só a arte salva

Notícia publicada na edição de 09/10/2009 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 3 do caderno D -

Lúcia Castanho, que teve obra selecionada para a mostra da artista francesa Sophie Calle, fala sobre sua produção: ¿A tragédia e o feminino são matéria-prima para o meu trabalho¿ 
 
 
O que você faria se seu namorado rompesse as relações com você via email? Ao invés de se desiludir completamente com a vida (ou, no caso das mais dramáticas, armar um barraco típico de novela mexicana), a artista francesa Sophie Calle resolveu transformar sua tragédia íntima em arte. A vingança amorosa ganhou dimensões estéticas na instalação ¿Cuide de Você¿ (referência ao ¿conselho¿ que o namorado Grégoire Bouillier deixou no final do email). E para cuidar bem de seus sentimentos, Sophie convocou 107 mulheres (entre elas artistas, bailarinas, uma designer, uma revisora ortográfica, uma advogada, uma adolescente e até mesmo sua mãe) para darem possíveis interpretações para o tal ¿fora virtual¿. Para a revisora ortográfica, o que mais chamou a atenção foi o fato do texto de Grégoire estar ¿repleto¿ de erros linguísticos, inclusive redundâncias. (Detalhe: o ex é um renomado escritor francês). Já a adolescente mandou, via SMS, uma resposta curta e grossa à artista: ¿Ele se acha, Sophie¿. Para a designer, o email impresso mereceu apenas ser transformado em barquinho de papel. Essas e outras respostas formaram a base da instalação que passou pela Bienal de Veneza de 2007 (mais tradicional exposição de artes do mundo) e, recentemente, pelo Sesc Pompéia, em São Paulo. Mas os desdobramentos do tal email (pobre, Grégoire!) não pararam por aí. O público que visitou a exposição em São Paulo foi convidado também a criar sua resposta e enviá-la via email. As mais criativas foram selecionadas para participar da exposição que atualmente está em cartaz no MAM da Bahia até novembro. E não é por acaso que a artista plástica sorocabana Lúcia Castanho teve sua ¿obra-resposta¿ (uma fotografia) escolhida para integrar a mostra: ¿Me identifico muito com a poética de Sophie. Me emociona bastante. A tragédia e o feminino também são matéria-prima para o meu trabalho¿. Atualmente, Lúcia tem se dedicado principalmente a experimentos em foto-performance. Para isso, tratou de criar uma personagem, que não tem nome e a qual a artista evita aferir muitos adjetivos. Está certa. Num tempo em que a verborragia inunda o universo da arte contemporânea, a obra deve mesmo falar por si. A produção da personagem começa por sua caracterização. Além da peruca vermelha - utilizada como um disfarce (vale frisar que o rosto nunca é revelado), Lúcia produziu diversos objetos que ajudam a construir a dimensão psicológica da personagem. No ateliê, as telas (que marcaram presença muito forte desde o início da carreira da artista na década de 70) vão dando espaço para indumentárias carregadas de simbologias: coroas de flores e espinhos, vestidos pretos enfeitados com flores de plástico vermelho e corpetes tecidos com fios de arame. O voo já nasce abortado nas asas construídas de ferro retorcido e penas. ¿Mesmo na contemporaneidade sinto que a mulher está aprisionada em muitos sentimentos. As produções nascem dessa minha angústia e inquietação de ser mulher, esposa e mãe¿, comenta a artista com discrição. Ao vestir esses trajes-objetos, Lúcia despe-se de qualquer pudor em relação a seus sentimentos e enfeita a sua dor. ¿É trágico mesmo. E às vezes penso que deveria ser ainda mais. Mesmo assim há todo um cuidado estético com a cena¿, reflete. Em uma das fotos, um líquido vermelho escorre das mãos que seguram flores de plástico também vermelhas. Mas se por um lado a feminilidade vem acompanhada de aflições e angústias, por outro a arte pode trazer a redenção. ¿Após fazer essas performances absolutamente trágicas, sinto um alívio imenso. Fico feliz mesmo. Daí a pouco estou eu a fertilizar outras angústias¿, explica Lúcia. Após a performance, a artista debruça-se sobre a seleção das fotos. ¿Gosto de frisar que o meu trabalho não é a fotografia. Pra mim, a fotografia tem única e exclusivamente a função de registro, de captar a performance¿, enfatiza. Com o intuito de se aproximar do resultado final do trabalho proposto pela sorocabana - mesmo correndo o risco de aprisioná-lo em adjetivos castradores - pode-se dizer que nas fotos de Lúcia Castanho passeiam as ideias de abandono, prisão e decepção. Parece haver ainda, como aponta a também sorocabana Míriam Cris Carlos, ¿o desejo de voltar ao útero¿. Aliás, algumas poesias de Míriam e também de Pablo Neruda aparecem nos trabalhos da sorocabana. O consolo do poeta chileno não poderia ser mais apropriado após deixar-se levar pela obra de Lúcia Castanho: ¿O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido¿. 
 
 

Sophie Calle encurta as distâncias entre arte e vida 
 
Ao entrar em contato com a obra de Sophie Calle, na verdade, o espectador está em contato com a vida da artista francesa. Sophie encurta qualquer distância que possa haver entre arte e vida. E nem ao menos usa peruca para disfarçar (só utilizou o aparato quando trabalhava de striper - isso mesmo, striper! - e tinha medo que os parentes descobrissem seu paradeiro). Um exemplo é o trabalho intitulado ¿Les Dormeurs¿ (¿Aqueles que dormem¿, 1979), quando a artista escolheu pessoas ao acaso para dormir turnos consecutivos de oito horas em sua cama, por uma semana, enquanto os assistia e fotografava. Já em ¿La Filature¿ (¿A perseguição¿, 1981), se faz seguir por um detetive, e expõe fotos da investigação simulada. Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre esse trabalho, o livro ¿Histórias Reais¿ (que não poderia ter nome mais propício) pode ser um bom início. Lá, Sophie, através de textos e fotografias, expõe sua criativa maneira de transformar o que poderia ser fracasso em arte. 
 
Confira pequeno trecho do livro: 'A carta de amor'  
 
Sobre a mesa, está jogada displicentemente, há anos, uma carta de amor. Eu nunca havia recebido uma carta de amor. Encomendei uma a um escritor público. Oito dias depois, recebi uma linda carta de sete páginas, escrita à mão, em versos. Havia custado cem francos, e o homem dizia: ¿... sem fazer um só gesto, segui você por toda parte...¿¿.

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