29 de ago. de 2012

Contadores da própria história

Notícia publicada na edição de 29/08/2012 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 1 do caderno C
Andrea Alves


Resultado de oficina de documentário no Quilombinho, 'Negro Nós' reúne depoimentos sobre a cultura negra em Sorocaba
  A cozinheira Palmira Rodrigues (90 anos) foi benzedeira muito procurada no Jardim Guaíba - Por: Luciana Lopez


Contar uma história é a melhor maneira de preservá-la. Acreditando na força dessa atividade secular, alunos da Oficina de Documentário, realizada no Centro Cultural Quilombinho pela Associação Cultura Votorantim, gravaram depoimentos de pessoas de diferentes profissões, missões e idades, homens e mulheres, que costuram a identidade de Sorocaba por meio da cultura negra. O que nasceu dessa ideia, o documentário "Negros Nós", será mostrado hoje, na Fundec. Dando voz a esses contadores da própria história, a proposta confere a cada depoente a qualidade de guardião da memória da cidade, de um povo, de valores e costumes. Entre os selecionados para essa série de entrevista está o cantor Cassiano Moraes, que faleceu no dia 19 desse mês e será homenageado durante o lançamento do documentário. "Negro Nós" também vai virar um livro, com fotografias e entrevistas transcritas, que será lançado em novembro, durante a Semana da Consciência Negra.

A série de vídeos é um trabalho coordenado pelo jornalista e documentarista Werinton Kermes que, como mostra trabalhos anteriores - os documentários "João do Vale , Muita Gente Desconhece" e "Clementina de Jesus - Rainha Quelé", ambos dirigidos por ele - busca a valorização da cultura do negro. "Sou filho de um negro com uma italiana. Essa coisa de se preocupar em fazer com que a negritude local possa ser mais estudada, aprofundada, ouvida está na minha vida." A oportunidade de ouvir os negros que aqui nasceram ou que para Sorocaba se mudaram, atuando na formação de bairros e de importantes passagens históricas da cidade, surgiu com a oficina de documentário ministrada por Kermes no Quilombinho. O trabalho é praticamente a conclusão do curso que durou um ano aproximadamente. No entanto, mais que projeto de finalização de curso, é o resgate e a celebração da memória de Sorocaba. "Tem gente de toda a classe social, de diferentes funções, com depoimentos singelos ou mais sofisticados, não só de negros porque a ideia é justamente não ter nenhum pré-conceito, não é fazer disso um gueto", frisa o diretor.

Para Rosângela Alves, diretora do Quilombinho, essa é a beleza do trabalho. "Não foram escolhidas apenas pessoas conhecidas, artistas, intelectuais. Foram escolhidas aqueles senhoras, aquelas donas-de-casa que já tiveram uma vida dura, difícil, mas que têm uma história de superação. São pessoas que cativam quando falam de suas vidas, de seus costumes. Muitas pessoas se reconhecem na história dessas pessoas.". Como a cozinheira Palmira Rodrigues, 90 anos, moradora do Jardim Guaíba que por anos foi benzedeira muito procurada em seu bairro. Além dela e do cantor Cassiano Moraes, participam da série Ademir Barros dos Santos, Ana Maria Souza Mendes, Antonio José de Almeida (Toninho Pitico), Benedita Silva de Toledo Alves, Bernardino Antonio Francisco, Fidelcino Marsal, Itamar Sudário da Silva, João de Campos Júnior, Joel Quintino, José Carlos dos Santos (Santão), José Marciano, Marco Antonio Pereira, Maria Angélica dos Reis, Marilda Aparecida Corrêa, Nivaldo de Logunèdé, Olga Domingues Camilo, Rosemari da Conceição Galvão e a própria Rosângela.

Só os primeiros 20

A emoção que Rosângela viveu ao ser escolhida pelo grupo para também gravar um depoimento foi a mesma que sentiu ao ver que todo esse trabalho preserva também a memória da própria oralidade. Dessa forma, cada depoente relembra os griôs, como eram chamados os historiadores africanos. "A oralidade que fala da cidadania foi transformada num material histórico que vai servir de consulta para as futuras gerações sobre as pessoas que colaboraram e colaboram com a história da cultura negra na cidade", afirma Rosângela. Cópias do documentário, definido por ela como arte e como material didático, serão distribuídas em escolas, instituições e bibliotecas.

Kermes, rememorando o fato de o cantor Cassiano Moraes, muito atuante em relação à cultura negra na cidade, ter gravado sua entrevista 25 dias antes de sua morte, reforça o importante sentido da socialização. "As pessoas não podem partir sem contar sua história." Mais uma vez emocionada, Rosângela pontua a necessidade de tornar permanente a presença de quem tem algo para contar. "Cassiano Moraes está lá. Foi registrado, perpetuado. Não dá para calcular o valor que isso tem."

A série "Negros Nós" será exibida nas TVs Comunitárias de Sorocaba e Votorantim, a partir da semana que vem (a data de veiculação ainda não foi definida). Além disso, novos depoimentos já serão captados a partir de setembro, já que a proposta do grupo é dar continuidade a esse trabalho, com mais um lançamento previsto para antes do Carnaval, planeja Kermes. "Vamos fazer séries de 20 depoimentos enquanto tivermos fôlego." Luciana Lopez, que além de fazer parte da Associação Cultura Votorantim foi aluna da oficina, destaca que o grupo é formado por pessoas abertas a receber novas ideais, novas contribuições. "Documentários são feitos por quem gosta de sentar na praça e ouvir o que uma pessoa tem para falar." O objetivo maior é colher histórias de pessoas que valorizam a cultura negra. "Esses foram só os primeiros vinte depoimentos. É um bom número, mas ainda tem muita gente para contribuir."

Com o intuito de promover a produção local, o título da série de vídeos foi adequado a uma música já existente, "Negro Nós", composta por Míriam Cris Carlos e Carlos Madia. Cada história é um vídeo editado com duração média de 40 minutos. Para o lançamento, já que não haveria tempo para todas as exibições, foi editado um material especial, de 30 minutos, com pequenos trechos de cada um dos entrevistados. O cantor Cassiano Moraes será o homenageado durante o lançamento do documentário com uma apresentação de um grupo carinhosamente apelidado de Malungos - palavra que em africano significa amigo - formado por vários cantores e simpatizantes da comunidade negra.

Serviço

Lançamento da série de documentários "Negro Nós"
Direção: Werinton Kermes
Hoje, às 19h
Sala Fundec (rua Brigadeiro Tobias, 73, Centro)
Entrada gratuita (os convites são limitados e deve ser retirados uma hora antes da apresentação)

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