Gazeta de Votorantim - 23/02/2013
Míriam Cris Carlos[1]
A cena inusitada pôde ser vista da varanda. Estava pousado em um galho frágil do
abacateiro, e era desengonçado e feio. As penas pareciam uma despenteada
cabeleira de quem acabara de acordar. Outra ave, maior e bem-composta, vinha e
batia-lhe as asas com força. Ele se grudava com mais vigor no galho, que
sacolejava. O pássaro maior insistia. Batia-lhe uma, duas, três, meia dúzia de
vezes. O pequeno feioso parecia inabalável em seu intento de permanecer ali,
apanhando.
De repente, talvez percebendo que os sopapos não adiantariam,
o pássaro passou a dar violentas bicadas no menor: pelas costas, no pescoço.
Até que outro pássaro grande pousou. O que batia, passou a vez. Será que vai
apanhar de dois, agora? pensei... Mas o segundo limitou-se a aproximar-se e a
dar bicadinhas de leve, que pareciam carinhosas, tendo em vista a atitude
violenta do primeiro. Em seguida, o segundo pássaro levanta vôo e passa a
observar de perto o primeiro, que retorna à pancadaria.
Não sou especialista em comportamento de pássaros, mas percebi
que o que apanhava era um filhote, e que aqueles que batiam - um com mais
vigor, o outro quase que na tentativa carinhosa de dar uma força - possivelmente
eram os pais. E o que poderiam querer, batendo e empurrando o filhote que
acabara de nascer? Talvez fazê-lo voar.
Foi esta a minha conclusão. Devia se tratar de uma primeira
lição, que dizia: você deve deixar o ninho e aprender sozinho a voar. Esta é a
condição da sua sobrevivência. Sem o vôo, será fatalmente vítima dos
predadores. Não será capaz de buscar seu próprio sustento. Não poderá repetir o
ritual de seus pais e ensinar um filhote a ganhar céu.
E por isso, os pais eram mais duros que carinhosos. Porque
instintivamente sabiam que nem poderiam deixar o filhote para sempre no ninho,
tampouco poderiam carregá-lo nas costas.
Penso que a lição dos pais pássaros serve para nós, humanos.
Às vezes temos que ser duros com nossos filhotes - ainda que contra a nossa
vontade. Quando estes não querem voar por conta própria, é preciso dar um
empurrão, mesmo que isto exija firmeza, e, com o risco de um tombo, que pode
até machucar, mas que ensinará que o vôo, como a própria vida, requer
independência.
Por mais que doa, é necessário, pois com a autonomia vêm a
liberdade, o autoconhecimento e a segurança para poder voar mais alto.
[1]
Professora e pesquisadora do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade
de Sorocaba - UNISO.
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